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REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA E A DESAFETAÇÃO DE BENS PÚBLICOS


Debora Cristina de Castro da Rocha[1]

Claudinei Gomes Daniel [2]

Edilson Santos da Rocha[3]


A regularização fundiária no Brasil consiste em tema recorrente, especialmente quando o assunto se volta as políticas públicas que têm por escopo as ocupações irregulares urbanas ou rurais. Tais ocupações ou assentamentos, advêm de uma condição que se origina, sistematicamente, da segregação e da desigualdade social, responsáveis pela formação das aglomerações, originando de núcleos informais e irregulares.

A regularização fundiária ocorre mediante individualização das matrículas de lotes ou áreas públicas ou privadas, sejam estas urbanas ou rurais, que são resultantes de projetos de regularização aprovados, e que levam posteriormente ao registro de direitos reais em favor dos ocupantes, o que vai ao encontro dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição, bem como de melhorias e readequações urbanísticas, ambientais e sociais.

A Regularização Fundiária de bens públicos se investe do princípio constitucional que tem por escopo a função social da propriedade, seja privada ou pública. Não obstante, não há consolidação do referido princípio, considerando que a obtenção de renda se sobressai ao direito fundamental à moradia, bem como aos demais direitos envolvidos, tais como direito à cidade, trabalho e meio ambiente saudável[4].

Entretanto, diante da necessidade do Poder Público em regularizar os assentamentos informais, a Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017, passou a dispor sobre a regularização fundiária de áreas urbanas e rurais, visando beneficiar milhões de moradores em áreas irregulares e informais, com a possibilidade de se garantir direito real aos ocupantes, trazendo consigo vários outros benefícios como a valorização do imóvel, garantia de sucessão, empréstimos bancários para reforma do imóvel, além da organização urbanística, que possibilita a preservação do meio ambiente.

Da importância social da Regularização Fundiária e as recorrentes ocupações de imóveis públicos, surge a necessidade de compreensão acerca do processo de desafetação do bem público, consubstanciado em ato estatal que leva ao seu desligamento da estrutura institucional e organizacional do Estado.

Hipótese essa em que o bem continua sendo público, mas deixa de ser destinado à satisfação das necessidades coletivas e estatais, alterando o seu regime jurídico, inclusive acerca da sua alienabilidade, permitindo ao ente público conceder a titularidade do bem aos ocupantes.

A afetação ou a desafetação ocorrem tanto por ato administrativo quanto por lei, ou seja, de acordo com a sua origem, respectivamente, pela forma adequada, desde que inexista vedação constitucional, qualquer bem poderá ser convertido em dominial e alienado. A afetação ou a desafetação podem ser ainda de forma tácita ou fática, estas duas últimas pouco aceitas pela doutrina.

A Lei 13.465/2017 prevê a concessão de direitos reais de imóveis públicos para seus respectivos ocupantes, dispensando a necessidade de avaliação prévia do valor desses bens, conforme determina a legislação. A nova Lei de Licitações no mesmo sentido em seu Art. 76. também prevê tal flexibilização sobre as áreas rurais, desde que cumprida a função social pelos ocupantes:

§ 3º A Administração poderá conceder título de propriedade ou de direito real de uso de imóvel, admitida a dispensa de licitação, quando o uso destinar-se a:

II - pessoa natural que, nos termos de lei, regulamento ou ato normativo do órgão competente, haja implementado os requisitos mínimos de cultura, de ocupação mansa e pacífica e de exploração direta sobre área rural, observado o limite de que trata o § 1º do art. 6º da Lei nº 11.952, de 25 de junho de 2009.

Estabeleceu-se diferenças com a Lei Fundiária entre os processos para regularização de áreas públicas e privadas. A lei, em alternativa à impossibilidade de usucapião de área pública dominical, ampliou a concessão de uso especial para fins de moradia, para áreas ocupadas até dezembro de 2016[5].

Além disso, a Lei 13.465/2017, traz o instituto da “legitimação fundiária”, que autoriza o ente federativo a conceder a titularidade do imóvel público ou privado em situação irregular ao ocupante do “núcleo urbano informal consolidado” já existente na data de 22 de dezembro de 2016, data da edição da MPV 759/2016, desconsiderando o período anterior da posse.

Art. 11. Para fins desta Lei, consideram-se:

VII - legitimação fundiária: mecanismo de reconhecimento da aquisição originária do direito real de propriedade sobre unidade imobiliária objeto da Reurb;


Art. 9º Ficam instituídas no território nacional normas gerais e procedimentos aplicáveis à Regularização Fundiária Urbana (Reurb), a qual abrange medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes.

§ 2º A Reurb promovida mediante legitimação fundiária somente poderá ser aplicada para os núcleos urbanos informais comprovadamente existentes, na forma desta Lei, até 22 de dezembro de 2016.


Por sua vez, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 20, definiu quais são os bens imóveis da União. Esse artigo revela um leque de razões que justificam o domínio do poder central sobre a terra. São elas a defesa da soberania nacional; a conservação do meio ambiente; a proteção aos povos indígenas, habitantes e “proprietários” originais do território brasileiro; o controle sobre a exploração dos recursos naturais e a garantia da propriedade sobre os imóveis adquiridos pela União[6].

Todavia, historicamente, a lógica da supremacia dos interesses do proprietário na utilização da propriedade produziu nas cidades e no campo a consolidação e o agravamento do processo de exclusão socio territorial de um contingente crescente de pessoas. Impedidas, no campo, de permanecer trabalhando na terra, nas cidades a dificuldade está em ocupar legalmente o território – adquirir um lote, construir sua moradia[7].

Assim, a partir da intensificação das lutas rurais e urbanas pela inclusão social e territorial, iniciou-se a construção de um novo paradigma, segundo o qual a terra, pública ou privada, deve cumprir uma função social, que prevalecerá sobre o direito individual à propriedade[8].

O Artigo 5° da Constituição Federal de 1988 traz, logo após a garantia do direito de propriedade, um inciso que impõe uma limitação a esse direito:

“XXIII – a propriedade atenderá a sua função social”

Em 1988, os constituintes, em sintonia com as lutas sociais e com as tendências internacionais, contemplaram novas razões na definição do patrimônio imobiliário da União, com especial destaque à proteção ambiental. São da União: as águas e as praias fluviais situadas em territórios de seu domínio, as que cortam mais de um Estado e as que se situam na fronteira; o mar territorial e a plataforma continental; os terrenos de marinha, situados na costa marítima; as ilhas oceânicas; as cavernas; entre outros[9].

No entanto, a Constituição veda a usucapião de bens públicos, trazendo consigo, portanto, a ideia de imprescritibilidade dos bens públicos:

Os bens públicos não podem ser usucapidos. A Constituição da República textualmente proíbe a aquisição de imóveis públicos urbanos (art. 183, § 3º) e rurais (art. 191, § 3º) por usucapião.

Em tais hipóteses, a Legislação Fundiária atribui ao ente titular do bem público, a decisão com base em sua legislação própria, acerca da regularização do núcleo, o título a ser concedido ao ocupante, e a natureza onerosa ou gratuita da cessão.

O Código Civil dispõe que bens públicos afetados são inalienáveis, não sendo sujeitos à transferência de domínio para terceiros. Porém, a exceção se mostra no mesmo dispositivo, quando este dispõe a condicionante “enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar”, ou seja, para os bens públicos dominicais, quando não são destinados para uso público específico, autoriza-se a venda, doação e a concessão de uso real.

Art. 100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar.

Por sua vez, a Legislação Fundiária dispensa, dos entes públicos as determinações de autorização legislativa, avaliação prévia e desafetação dos bens ocupados, dando permissivos para que a regularização ocorra a despeito de autorização legal.

A desafetação tácita ou fática e consequente concessão de titularidade, advém da necessidade de regularização dos núcleos informais, assim, cada vez mais o legislador vem se atentando ao direito à moradia, além de buscar garantir o direito de propriedade e sua função social, posto que, tais direitos estão previstos na Constituição Federal de 1988, com o desígnio em desenvolver a função social da propriedade e com o propósito de atingir o bem estar de seus ocupantes.

Por conseguinte, a formalidade pela qual se processa a desafetação do bem público quanto ao seu fim, mostra-se mitigada quando, de outro lado, verifica-se a necessidade em atribuir utilidade ao bem como prevalência da supremacia do interesse público.

Nesse sentido, se há um bem afetado, todavia, inutilizado, ou que não se preste à coletividade, evidencia-se adequado o bem à desafetação e posterior concessão de sua titularidade ao ocupante do núcleo urbano consolidado, prevalecendo como premissa maior no caso, o interesse público envolvido.

Assim, quando o ordenamento jurídico dispõe que determinados bens públicos são inalienáveis, vale considerar que tal mandamento somente se aplica enquanto os bens forem destinados ao uso comum do povo ou a fins administrativos especiais, isto é, enquanto tiverem destinação pública específica. Uma vez desafetados os bens, seja mediante lei, fato ou ato administrativo, poderão estes serem alienados, convertendo-se em bens dominicais.

Portanto, na situação fática de uma ocupação por particular de um bem público, é acertada e notória a flexibilização legislativa acerca da possibilidade de prescrição aquisitiva de patrimônio público, decorrente da ponderação histórica dos interesses e princípios envolvidos como a dignidade da pessoa humana, o direito de propriedade, o direito fundamental à moradia e o interesse econômico do Estado, que é interesse público secundário (bem dominical).


[1] Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (2010), advogada fundadora do escritório DEBORA DE CASTRO DA ROCHA ADVOCACIA, especializado no atendimento às demandas do Direito Imobiliário e Urbanístico, com atuação nos âmbitos consultivo e contencioso; Doutoranda em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba; Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pelo Centro Universitário Curitiba; Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho e em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e Pós-graduanda em Direito Imobiliário pela Escola Paulista de Direito (EPD); Professora da pós-graduação do curso de Direito Imobiliário, Registral e Notarial do UNICURITIBA, Professora da Escola Superior da Advocacia (ESA), Professora da Pós-graduação da Faculdade Bagozzi e de Direito e Processo do Trabalho e de Direito Constitucional em cursos preparatórios para concursos e para a OAB; Pesquisadora do CNPQ pelo UNICURITIBA; Pesquisadora do PRO POLIS do PPGD da UFPR; Presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/subseção SJP triênio 2016/2018, Vice-presidente da Comissão de Fiscalização, Ética e Prerrogativas da OAB/subseção SJP triênio 2016/2018; Membro da Comissão de Direito Imobiliário e da Construção da OAB/seção Paraná triênio 2013/2015 e 2016/2018; Presidente da Comissão de Direito Imobiliário e Urbanístico da Associação Brasileira de Advogados (ABA) Curitiba; Membro da Comissão de Direito à Cidade da OAB/seção Paraná; Membro da Comissão do Pacto Global da OAB/seção Paraná; Membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB/seção Paraná; Membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM; Segunda Secretária da Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica (ABMCJ); Palestrante, contando com grande experiência e com atuação expressiva nas áreas do Direito Imobiliário, Urbanístico, Civil, Família e do Trabalho, possuindo os livros Reserva Legal: Colisão e Ponderação entre o Direito Adquirido e o Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado e Licenciamento Ambiental Irregularidades e Seus Impactos Socioambientais e vários artigos publicados em periódicos, capítulos em livros e artigos em jornais de grande circulação, colunista dos sites YesMarilia e do SINAP/PR na coluna semanal de Direito Imobiliário e Urbanístico do site e do programa apresentado no canal 5 da NET - CWB TV, na rádio web 26000.net e rádio O dia FM. [2] Sócio na Empresa Domínio Legal Soluções Imobiliárias – Especializada em Regularização Fundiária. Acadêmico de Direito pela Faculdade Anchieta de Ensino Superior do Paraná – FAESP (Centro Universitário UNIFAESP). Colaborador no escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia - Especializado em Direito Imobiliário e Secretário de Presidência do Sindicato dos Advogados do Estado do Paraná - SINAP. Produtor do Programa SINAP NO AR, que vai ao ar no Canal 5 da Net da CWB TV e transmitido na Rádio Blitz.net. Produtor do Programa SINAP NA TV, que vai ao ar no Canal 525 da Net da Rede Central TV Brasil. E-mail: claudinei@dcradvocacia.com.br [3] Sócio na Empresa Domínio Legal Soluções Imobiliárias – Especializada em Regularização Fundiária Advogado pelo escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia - Especializado em Direito Imobiliário. Bacharel em Direito pelas Faculdades da Industria - FIEP. e-mail: edilson@dcradvocacia.com.br. [4] BARBOSA, Mariana; FONTES Mariana Levy Piza; MENCIO, Mariana; SAULE JÚNIOR, Nelson. Manual de Regularização Fundiária em Terras da União. Secretaria do Patrimônio da União Brasil. Disponível em: https://www.suelourbano.org/bibliotecas/2017/09/29/manual-de-regularizacao-fundiaria-em-terras-da-uniao/. Acesso em: 07 dez. 2021. [5] SILVA, Renan Luiz dos Santos da. Regularização fundiária urbana e a Lei 13.465/2017: aspectos gerais e inovações. Revista Cadernos do Desenvolvimento Fluminense #13. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/cdf/article/download/37029/26162. Acesso em: 07 dez. 2021. [6] BRASIL. Plano Nacional de Caracterização - PNC. Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União – SPU. Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/patrimonio-da-uniao/plano-nacional-de-caracterizacao/arquivos/2020/PNC_metas20212025.pdf. Acesso em: 07 dez. 2021. [7] BARBOSA, Mariana; FONTES Mariana Levy Piza; MENCIO, Mariana; SAULE JÚNIOR, Nelson. Manual de Regularização Fundiária em Terras da União. Secretaria do Patrimônio da União Brasil. Disponível em: https://www.suelourbano.org/bibliotecas/2017/09/29/manual-de-regularizacao-fundiaria-em-terras-da-uniao/. Acesso em: 07 dez. 2021. [8] Brasil. Plano Nacional de Caracterização - PNC. Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União – SPU. Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/patrimonio-da-uniao/plano-nacional-de-caracterizacao/arquivos/2020/PNC_metas20212025.pdf. Acesso em: 07 dez. 2021. [9] Brasil. Plano Nacional de Caracterização - PNC. Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União – SPU. Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/patrimonio-da-uniao/plano-nacional-de-caracterizacao/arquivos/2020/PNC_metas20212025.pdf. Acesso em: 07 dez. 2021.


Fonte: Migalhas

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